Cabo Girão no Tempo e no Espaço

Cabo Girão no Tempo e no Espaço

Nesta gávea de pedra,
A navegar parados,
Perguntamos ao mar
E aos pontos cardeais
Se seremos gigantes encantados
Em homens naturais.

Miguel Torga, sobre o Cabo Girão (Ilha da Madeira)

(© Sefton Samuels)

O seu nome remonta ao alvor da descoberta da ilha da Madeira, quando Zarco e seus companheiros ali terminaram o “giro” do primeiro dia de reconhecimento da costa madeirense. Com efeito, narra o Livro II das Saudades da Terra que os descobridores viram um rochedo muito alto, logo aí apegado e arrebentar no mar em uma ponta que ela abaixo fazia, a qual lhe ficou por meta e fim do seu descobrimento, e lhe deram nome o Cabo de Girão por ser daquela vez a derradeira parte e cabo do giro de seu caminho (Frutuoso, 1998).

Embora situado na partilha entre duas das freguesias do concelho de Câmara de Lobos, é na freguesia da Quinta Grande onde se encontra maior ligação ao Cabo Girão, exemplo disso é a origem do nome da freguesia. Passaram estas terras por diversos nomes, na maior parte das vezes alusivos ao nome dos proprietários, em 1501, ainda como propriedade do 2º Donatário do Funchal João Gonçalves da Câmara, era conhecida como Quinta do Cabo Girão, seguindo-se as denominações de Quinta de Manuel de Noronha, Quinta de D. Maria de Ataíde, Quinta de Luis de Noronha, Quinta de Fernão de Noronha, Quinta dos Padres, Quinta da Companhia, Quinta da Vera Cruz e finalmente por Quinta Grande.

(© João Pestana)

(© João Pestana)

Similarmente, também para a denominação das Fajãs dos Asnos e Bebras residiu uma conjugação de fatores históricos, culturais ou socioeconómicos. Anteriormente conhecida como Fajã do Gregório, a denominação de Fajã dos Asnos tem origem na ligação deste território à agricultura e à antiga pedreira do Cabo Girão, concretamente, a espécie de animal doméstico Asnos foi usada como alternativa de transporte dos produtos agrícolas e inertes.

Relativamente ao nome da Bebras, segundo o Dicionário de Falares do Arquipélago da Madeira de J.M. Soares de Barcelos, esta designação pode ter dois sentidos, ou seja, o nome de uma espécie de figo temporão produzido pelas árvores vulgarmente conhecida como “bebereira” ou, significa preguiçoso “és um bêbra, não queres fazer é nada”.

Uma abordagem à área do Cabo Girão, implica necessariamente uma referência à prática agrícola nas suas fajãs. Sobre as terras, Gaspar Frutuoso refere que Tem esta quinta boas terras de canas e de trigo e centeio, mas vinhas poucas, por ser a terra alta, ainda que ao longo do mar tem o mesmo Luís de Noronha uma fajã de grande pomar e vinhas de muito preço, e passatempo, que dá cada ano 40, 50 pipas de malvasias (como citado em Vieira, 2017).

(© AIG)

Pelo excerto do cronista, é evidente a aptidão agrícola das Fajãs do Cabo Girão desde tempos remotos, persistente até hoje, graças á sageza e engenho das sucessivas gerações de agricultores que dali retiram o seu sustento num delicado equilíbrio com o meio. Da árdua conquista de terrenos de cultivo junto ao mar, com a construção de muros de pedra aparelhada, pequenos poios e engenhosos sistemas de irrigação e transporte, prosperou uma singular paisagem classificada desde 2017 como Paisagem Protegida

A paisagem protegida em isolados terraços multifuncionais, resulta da coevolução do ambiente físico, mudanças sociais e económicas. Esta está repleta de elementos herdados do passado que expressam os valores, crenças e saberes das gentes do Cabo Girão.

Outro aspeto incontornável da história do Cabo Girão, prende-se com séculos de exploração de cantaria mole na base da arriba do Cabo Girão. A importância das pedreiras existentes e o volume dos blocos de pedra extraídos foi de tal ordem, que o Rei D. Manuel I ordenou construir embarcações com características específicas para o transporte da pedra desde o Cabo Girão até à cidade do Funchal.

(© AIG)

Segundo a obra A Pedra Natural do Arquipélago da Madeira, para além da emblemática Sé Catedral do Funchal, a cantaria do Cabo Girão foi também utilizada num número significativo de outros edifícios históricos do arquipélago, como é exemplo, Convento de Santa Clara, Forte de São Tiago, edifício da Câmara Municipal do Funchal, museu da Quinta das Cruzes, museu Frederico Freitas, museu de Arte Sacra, Palácio de São Lourenço, Palácio dos Cônsules, Palácio dos Ornelas, capela do Parque de Santa Catarina, Capela da Boa Viagem e na Torre do Capitão (Gomes, 1997). Regista-se as últimas extrações para vãos de janelas e portas, lumieiras, soleiras e construção de fornos, mas o desuso destes materiais levou à desativação da pedreira na década de 80.

Regista-se como proprietário em 1758 o Dr. João Afonso Henrique, data em que hipotecada à Misericórdia do Funchal. Posteriormente, no registo vincular de 1862, o seu sobrinho o Visconde de Torre Bela, referia que tinha um terreno que confrontava com a pedreira da Misericórdia, o qual fora hipotecado e confirmado a esta instituição, em 1758. Esta parcela foi a hasta pública em 1897, tendo sido arrematada por José Fernandes de Azevedo. Este proprietário vendeu-a, em 1907, a Manuel Antunes Nunes e António de Freitas Catarata, este ascendente dos atuais possuidores (Ribeiro, 2003). No século XX, estes terrenos ainda pertenciam à família Catarata e seus descendentes, foi posteriormente sujeita a contratos de arrendamento e/ou concessões, para exploração da pedreira e respetivos terrenos de cultivo, incluídos nos contratos.

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(© AIG)

A intensa exploração das pedreiras do Cabo Girão, por meio de galerias abertas em vários pontos na base da arriba, provocou uma falta de apoio das formações geológicas sobrejacentes, tal fato conduziu a que acontecessem ao longo do tempo, diversos episódios de queda de materiais (Gomes et al.,1997).

A obra Ilhas de Zargo (Pereira, 1989) descreve aquela que terá sido a mais catastrófica: a 4 de março de 1930, outro desagregamento desta falésia, entre a Fajã dos Asnos e as Pedreiras, desprendeu rochas desde a altitude de 400m até á base, numa extensão de cerca de 200m de largura, que abafou a Fajã e a praia adjuntas e formou uma restinga a mais de 100m pelo mar dentro. Este levantou-se em ondas alterosas na direção de leste, invadindo a Ribeira do Vigário e a baía de Câmara de Lobos que no primeiro refluxo ficou com o seu leito a descoberto; dezanove pessoas foram vítimas desta tragédia: dezasseis a quem o mar tirou a vida na praia e três arrebatou nas ondas em cujo seio para sempre desapareceram.

(© Diário de Notícias da Madeira)

(© sem registo de autor)

Embora os registos técnicos pouco aprofundados da época, existem evidências na imprensa que, dias antes do acidente, 40 operários da pedreira apercebendo-se da iminência da tragédia tinham, entretanto, abandonado o local.

Este acontecimento e a devoção cristã por Nossa Senhora de Fátima, terão levado à construção da Capela de Nossa Senhora de Fátima no Cabo Girão, inaugurada a 11 de outubro de 1931, onde os madeirenses devotos, ainda hoje, fazem as suas peregrinações no mês de maio.

Entre os episódios trágicos que ficaram associados à Arriba do Cabo Girão, destaca-se ainda a história de Henrique Alemão. No século XVI, ali desapareceu, Henrique Alemão, um personagem lendário dos primitivos tempos da colonização da ilha da Madeira (Frutuoso, 1998). Tratava-se de um Principie Polaco, cujo verdadeiro nome se desconhece, que após ter perdido a batalha de Varna (1444), contra Amurate III (Sultão da Turquia, inimigo dos cristãos), fizera voto de peregrinar terra fora, armado Cavaleiro de Santa Catarina do Monte Sinai. Aqui foi recebido por Zarco, “com mui particular respeito”, que lhe deu a sesmaria que veio a denominar “Madalena”, lugar designado atualmente como Madalena do Mar. Segundo a obra Ilhas de Zargo, diligenciava Henrique Alemão apresentar-se ao Rei para que fazia aprestos, quando, ao dirigir-se do Funchal para a Madalena num pequeno batel, foi colhido por um desprendimento de rochas do Cabo Girão, e ali se sepultou no mar com o seu mistério (Pereira, 1989).

(© João Pestana)

Ao longo dos séculos, a imponência do Cabo Girão continuou a marcar este território, tornando-o uma referência no turismo madeirense. O alcance e beleza das paisagens, levou muitos curiosos a se deslocarem ao cume do Cabo Girão, mesmo com acessos dificultosos de outros tempos. Um antigo diretor de obras públicas da Madeira, num dos seus relatórios de campo, efetuado durante o estudo do Caminho Real entre o Funchal e São Vicente, relata: passei na parte superior do Cabo Girão e verifiquei pelo nivelamento a verdade desta altitude, e quis experimentar a impressão que sentiria ao complementar o espetáculo de uma tão grande altura, pois que ouvira afirmar, com admiração, que os touristas ingleses ali se assentavam numa saliência do terreno, dependurando as pernas sobre o abismo (Silva et al., 1994).

Segundo Alberto Vieira, um dos testemunhos mais importantes deixados pelos visitantes foi o de Isabella de França, que em 1854 o descreve assim: É impressionante olhar para tamanha altura, com os penhascos vermelhos a brilhar a luz, como se fossem os limites de um céu que pendesse sobre outro mundo para lá do nosso. Sucedia-se uma longa fila de rochas sobranceiras ao mar, de altitude variável e aqui e ali aplanadas em manchas de vinhedos e outras culturas. Havia camponeses a trabalhar em sítios onde parecia não existir espaço para assentar um pé; dir-se-ia que estavam colados à rocha. Na verdade, só os poderia comparar a moscas deslocando-se num espelho, e, no entanto, moviam-se cá e lá e andavam acima e abaixo como se tivessem o poder de sustentar-se no ar, independentes de todas as leis da locomoção humana (como citado em Vieira, 2017).

A propósito do interesse turístico do Cabo Girão, o Diário da Madeira de 23 de Outubro de 1926, refere ainda que: é enorme o número de estrangeiros que costumam ali observar aquele panorama deslumbrantíssimo. É um ponto verdadeiramente de turismo. Para lamentar é que seja de difícil acesso, os pontos mais elevados da rocha (Freitas, n.d.).

(© sem registo de autor)

Freitas (n.d), na sua obra Dicionário Corográfico - Câmara de Lobos refere que só a 14 de Setembro de 1937, foi adjudicada a construção do acesso a este promontório, a partir da Estrada Nacional 23, atual Estrada João Gonçalves Zarco, que terá ficado concluído em 1938. Esta nova estrada, projetada pelo Eng. Severino Antunes, tinha uma extensão de 850 metros e o empedramento obedecia a um moderno sistema de pedras regulares. Em toda a sua extensão, media 6 metros de largura, com exceção de um largo, a cerca de 50 metros do miradouro, que teria 14 metros e se destinava ao estacionamento e inversão de marcha dos automóveis.

Com a abertura da estrada, tornava-se premente dotar o local de um miradouro com melhores condições. Nesse sentido, a 1 de Setembro de 1938, mediante concurso público realizado pela Delegação de Turismo da Madeira, são adjudicadas as obras de construção do miradouro, que terão ficado concluídas ainda nesse ano (Freitas, 2017).

(© J. Arthur Dixon - Madeira Quase Esquecida)

A construção de novos acessos e a beneficiação do miradouro, em 1953, deram origem à implantação dos primeiros negócios ao longo da estrada que lhe dá acesso que, constituíram também, uma oportunidade de comercialização dos produtos locais para a população da freguesia da Quinta Grande.

Curiosamente, o interesse turístico do Cabo Girão, serviu também de motivo para uma importante reivindicação da população da Quinta Grande, para a instalação de um telefone público na freguesia.

Em 1930, o Diário da Madeira, na sua edição de 11 de Setembro, refere que por mais de uma vez já havia sido reclamada a instalação de um telefone na Cruz da Caldeira, no então magnífico estabelecimento de mercearia “A Higiénica”, situada junto ao início do acesso para o Cabo Girão, cujo proprietário tinha conhecimento em línguas. Como justificação para tal pretensão apontava-se não só o isolamento da freguesia, mas fundamentalmente a procura do telefone, tanto por nacionais como estrangeiros. Apresar das diligências, o telefone só chega a esta freguesia a 23 de Junho de 1954 (como citado em Freitas, 1998).

Fruto do afluxo de visitantes, em 1984 e 2012, o miradouro sofre novas beneficiações. Em 2012, a obra compreendeu novas acessibilidades a automóveis e a pé, o tratamento paisagístico de todo o espaço e a construção de um conjunto edificado que engloba seis espaços comerciais, um café com esplanada e instalações sanitárias e uma plataforma suspensa em vidro, denominada de skywalk, que veio enriquecer a infraestrutura e proporcionar aos visitantes uma panorâmica ainda mais abrangente.

A 4 de agosto de 2003, foi instalado um miradouro no sítio do Rancho, localizado a este do miradouro Cabo Girão, numa escarpa sobranceira ao mar, com excelentes vistas sobre Câmara de Lobos, o oceano e a arriba do Cabo Girão. Este miradouro está também dotado de um restaurante, parque de estacionamento, e ainda de um teleférico com acesso à Fajã das Bebras, que constitui o único acesso em terra para os visitantes, agricultores e proprietários dos terrenos das fajãs.

São inúmeras artes e meios de comunicação que fazem referência a esta majestosa arriba litoral, nomeadamente, autores e historiadores interessados pela rica história da Madeiras e, poetas como Miguel Torga que “assombrado” com a grandeza da arriba do Cabo Girão, dedicou-lhe o sentido poema “Gávea de Pedra” datado de 30 de Agosto de 1980. Assinalamos ainda o interesse por fotógrafos e pintores que eternizaram este Monumento Natural nas suas obras, é exemplo Winston Churchill, célebre primeiro ministro britânico durante a 2º Guerra Mundial, que na sua estadia de 12 dias na Madeira (Janeiro de 1950), registou a sua passagem com uma pintura da baia de Câmara de Lobos, com a imponente arriba do Cabo Girão em fundo.

(© sem registo de autor)

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